Furacão digital chega ao teatro
Com a internet, corpos se digitalizam e surge um ‘teatro expandido’
Lucas Pretti, 20/4/09, Link/Estadão
A matéria-prima do teatro é o encontro, e não uma fita magnética, um rolo fotográfico, um vinil. A experiência do espetáculo ao vivo, tida como impossível de reproduzir, é o que vinha poupando as artes cênicas dos ventos digitais que há tempos já varreram discos, fotografias e filmes. Pois os ventos se tornaram furacão e conseguiram relativizar até a presença, a experiência. Com a internet, estar em algum lugar deixou de ser uma condição real, física. Os corpos se digitalizaram. E, com eles, o teatro.
Ainda não são muitos pelo mundo e no Brasil, mas grupos cênicos que pesquisam as possibilidades binárias do teatro lideram a vanguarda artística contemporânea. A complexidade vem justamente da fusão entre as atuais teorias de arte (remix, hibridismo, cibercultura) ao que há de efêmero no teatro.
As principais experiências, que o Link resume nesta semana, usam transmissões ao vivo pela web com o intuito de ligar e desligar palcos e plateias distantes geograficamente. Junte a projeção de vídeos, performances, iluminação, artes plásticas e há possibilidades infinitas.
Os próprios artistas não entendem direito a areia movediça sobre a qual propõem espetáculos inovadores. “Sabemos que falamos de algo que não é mais teatro, mas que tem na essência uma teatralidade expandida”, afirma Rodolfo Araújo, ator e estudioso brasileiro do chamado “teatro digital”.
A própria alcunha é perigosa por reduzir o conceito ao significado de digital entendido como eletrônico pela maioria das pessoas – e por incluir erroneamente o teatro tradicional filmado e postado no YouTube (que não é, definitivamente, uma experiência de teatro digital).
A discussão vai longe, mas já há teóricos debruçados sobre o assunto. A artista Nadja Masura, da Universidade de Maryland, nos EUA, trabalha numa tese em que condiciona o teatro digital a algumas características – basicamente a existência de alguém conduzindo o espetáculo, um texto (que não é apenas palavra) e o público. A questão é que todos os elementos são relativos hoje em dia e expandidos a níveis máximos.
Se você nunca ouviu falar de grupos como Phila 7, La Fura dels Baus, Station House Opera, II Trupe de Choque e Cia. Automecânica de Teatro, leia a reportagem até o fim e relativize a cortina vermelha, os três sinais e as máscaras da comédia e tragédia – que coexistem, claro, mas representam um teatro de outros tempos.
“Teatro digital é a soma entre atores, 0 e 1 se movimentando na internet. A ação de dois atores em dois tempos e espaços diferentes correspondem a tempos infinitos e espaços virtuais. (…) O teatro digital é a linguagem binária sendo usada para conectar o orgânico com o inorgânico, o material com o virtual, o ator real com o avatar, a plateia presente com usuários de internet, o palco físico com o ciberespaço.”
Manifesto Binário, publicado pela companhia La Fura dels Baus
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Vida fragmentada do século 21 ganha espelho no teatro
Desconstrução do espaço e tempo, mistura de linguagens, fim da linearidade, ausência de uma mensagem fechada: um teatro feito de partes, como a realidade de hoje
As duas principais besteiras ouvidas quando se fala em teatro digital são especulações sobre a “morte” das peças tradicionais e a ironia típica dos puristas: “Isso não é teatro”. Não é mesmo e nenhum dos envolvidos com essa proposta artística sustenta o contrário, embora se mantenha a tríade atores, público e mensagem, que define teoricamente o teatro.
“A internet descentralizou os meios de produção, abriu a fase de colaboração e fez explodir a mistura de linguagens em todas as áreas profissionais. Então o que fazemos não é teatro. É qualquer outra coisa misturada. Mas isso, na verdade, pouco importa. É fluxo”, afirma o diretor da companhia paulista Phila 7, Rubens Velloso.
Ele dirige a trupe brasileira com mais visibilidade entre as interessadas na conversa entre artes cênicas e tecnologia, com três espetáculos tratados sob a ótica digital desde 2006: Play On Earth, A Verdade Relativa da Coisa em Si e What’s Wrong With the World?. Em todas houve ação à distância, com atores contracenando ao mesmo tempo em locais diferentes, até países. A foto acima evita muitas linhas de explicação.
O próximo espetáculo da Phila 7, em julho, pretende romper com o palco italiano e outros cânones do teatro convencional, como os momentos em que começa e termina o espetáculo e a linearidade, que será abandonada. Uma comparação feita pelo pesquisador Rodolfo Araújo situa o leitor menos acostumado com performances. “Na música eletrônica pouco importa o início e o fim, não é obrigatório dançar e também ninguém está interessado numa ‘mensagem’ fechada.” É o que ocorre com esse novo teatro.
Então estamos diante de uma revolução da forma? Não. O modo de se fazer é alterado substancialmente pela tecnologia, mas não faz sentido se não estiver relacionado ao conteúdo. O trabalho da companhia paulista II Trupe de Choque é um bom exemplo disso. Eles unem compromisso social, cultura livre e tecnologia para discutir, num espetáculo esperado para setembro, a condição do homem no atual sistema capitalista da informação.
A abordagem é tão complexa que lá se vão três anos de pesquisa no Hospital Psiquiátrico Pinel, em Pirituba, e na Usina de Compostagem de São Mateus, na zona leste da capital. O trabalho inclui pacientes do hospital e catadores de lixo num espetáculo que unirá os dois locais pela internet e terá uma terceira versão transmitida online.
“Estamos discutindo a centralidade do homem contemporâneo pela desconstrução do espaço. Se há três ações ao mesmo tempo, não há uma central. É sempre parte, nunca todo. Assim processamos as informações hoje”, afirma um dos atores da companhia, Fabrício Muriana.
A parte pelo todo é o objeto de pesquisa de uma corrente dramatúrgica contemporânea, dedicada à produção de textos hiperdramáticos. O termo foi cunhado em 2002 pelo escritor norte-americano Charles Deemer. É o texto do teatro digital.
Se há a abstração quase total levada à prática por companhias alternativas, também já tem gente fazendo teatro pela internet com uma cara mais próxima do público de hoje.
O projeto Teatro Para Alguém, idealizado pela atriz e diretora Renata Jesion, desde novembro mantém na internet produções periódicas de peças transmitidas ao vivo e arquivadas no YouTube. “Os atores interpretam para a câmera, mas na verdade há centenas de pessoas ali atrás. Estamos experimentando essa nova relação de presença”, afirma Renata.
O teatro flexível, palpável aberto, mixável só está começando. Para o público – que já não é mais apenas público, mas ator também – sobrou a função de ligar os pontos.
“O digital traz para as artes a falta de definição. A tendência é misturar tudo, o que chamamos de sistemas híbridos. A linguagem se torna quântica de certa forma, com um mesmo signo tendo vários ou nenhum significado ou função.”
Lucia Santaella, semioticista autora do livro Cultura e Artes do Pós-Humano
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Texto de peça digital é ‘linkável’
A melhor forma de explicar o hiperdrama é o exemplo dado pelo autor do conceito, o escritor americano Charles Deemer, professor da Portland State University. Imaginemos Quem tem medo de Virginia Woolf?, peça de 1962 de Edward Albee, clássico do realismo norte-americano. A peça se passa na casa de George e Martha, que convidam Nick e Honey, outro casal, e os colocam em situações constrangedoras. A ação é fixada na sala de estar.
Na acepção de Deemer, a peça poderia muito bem ser remontada com um texto hiperdramático numa casa de verdade. Quando houvesse entrada e saída de personagens da sala, o público teria a escolha de acompanhá-lo e vê-lo realizando ações extras à peça original no banheiro, na cozinha, no quarto. Quem ficasse na sala, assistiria à peça como Albee a pensou.
É a aplicação do conceito de hiperlinks ao texto dramático. Não apenas varia a forma de contar a história como a enriquece e “complexifica”, deixando para o público diversas escolhas. Qualquer uma será, necessariamente, parte do todo. O exemplo não usou a internet. Imagine o que fazer quando o espaço for o ciberespaço.
Interessados podem ler a versão hiperdramática de Deemer para A Gaivota, de Anton Tchekhov, no site tinyurl.com/dleksd.
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Experiências estrangeiras
La Fura dels Baus – www.lafura.com
Barcelona, Espanha
É o grupo autor do Manifesto Binário que deu origem ao nome “teatro digital”. Investiga as relações possíveis entre homens tendo a internet como meio e fim. Usa transmissões ao vivo como elemento cênico de grandes produções e lidera o movimento do novo teatro com as peças Imperium (foto), Metamorfosis, XXX, Obit e Naumon.
Station House Opera – www.stationhouseopera.com
Londres, Inglaterra
Julian Smith é filha de um geneticista e fundou a companhia, originalmente um grupo de performers, para explorar as relações entre as pessoas e o meio ambiente – o digital também. Em Play On Earth (foto), o rosto projetado de um personagem é formado por dois atores atuando ao mesmo tempo.
Paul Sermon – www.hgb-leipzig.de/~sermon
Salford, Inglaterra
A instalação Telematic Dreaming, do artista britânico, está mais perto da performance que do teatro, mas inspirou atores e diretores a pesquisar, nos anos 90, a presença do digital na vida das pessoas. Uma cama serve de palco para qualquer um, inclusive atores, interagirem com projeções de vídeo cujas fontes também são a internet.
Experiências brasileiras
Phila 7 – www.gag.art.br
São Paulo
Os espetáculos foram avançando na discussão da presença, sob as teorias de Flusser (imagem técnica) e Foucault (espaços heterotópicos). O próximo espetáculo, sem nome, se baseia na pesquisa Desesperando Godot, inversão contemporânea do texto de Beckett. Godot chegar ou não pouco importaria para o mundo conectado de hoje.
II Trupe de Choque – www.trupedechoque.org
São Paulo
Os 26 atores se dividem em núcleos para pesquisar tecnologia e vídeo. São quase três anos de estudos em áreas periféricas da cidade sob as teorias de Marx e da Escola de Frankfurt aplicadas ao capitalismo da informação. O espetáculo, em setembro, unirá locais pela internet para discutir o “centro” das coisas com a pretensão de fissurar o modelo hegemônico e alterar mentalidades.
Cia. Automecânica de Teatro – www.teatroparaalguem.com.br
São Paulo
A companhia convida autores contemporâneos, como Lourenço Mutarelli, para montar peças e transmiti-las pela web. Os espetáculos passados ficam disponíveis para sempre, num banco de dados que se fará riquíssimo com o tempo. A principal pesquisa é de linguagem e modelo de negócios, que mistura TV, teatro, cinema e internet.
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ENTREVISTA – RODOLFO ARAÚJO
‘Teatro digital é presença na ausência’
Se tudo é relativo e permitido na era digital do teatro, parece impossível catalogar as ideias. Abaixo, o pesquisador Rodolfo Araújo traça um panorama da nova arte, com a única certeza de que ela é múltipla.
Já é possível falar na categoria “teatro digital”, assim como há o épico, rústico, físico?
Eu sou avesso a essas denominações. Acho que, da mesma forma que o Link é mais um caderno de cultura digital e menos um caderno técnico, o teatro também vive dessa mistura toda. Mas há quem use a expressão “teatro digital” e coloque limites para a execução, a existência – mesmo relativa – da tríade pessoa, texto, público.
Telepresença é fundamental para o teatro digital existir?
O que se vê muito em conferências, o cara em tamanho real num holograma 3D, é uma baita possibilidade para criar espaços cênicos de convergência total. Peças como Play On Earth trazem uma presença na ausência. O ator está aqui e na Inglaterra ao mesmo tempo, fazendo-se ver e ouvir numa presença inclusive social, porque ele interfere culturalmente com um grupo de pessoas. A carne deixa de ser uma necessidade inexorável.
Qual o futuro ou as novas possibilidades do teatro fora a telepresença?
É a questão do corpo. Na semana passada foi notícia o australiano Stel Arc, nome famoso da body art que colocou uma orelha no antebraço. Ele vai usar um microfone para tentar ouvir o que se passa nessa orelha (risos). São dimensões radicais, mas válidas para responder qual será o corpo biotecnológico do futuro. Que outras modificações o corpo pode ter num contexto de representação? É uma questão obscura, mas um dos caminhos.
A relativização contemporânea pode ser perigosa? Podemos chegar ao nada a partir do “tudo pode”?
Não acho. É um cenário de experimentação naturalmente confuso. Duvido que essas estéticas hoje testadas pela Phila 7 ou pela La Fura dels Baus sejam a mesma que irá se popularizar daqui um tempo. Não estamos numa estética definitiva. É o primeiro passo na direção de algo que ninguém sabe o que vai ser.
Mas não pode também ter a pretensão de ser massiva. Estamos na cauda longa, afinal.
Exatamente. O digital não se pressupõe massivo. O conceito de popular acabou, não deve ser a pretensão desse teatro. O processo é colaborativo, a própria ideia de direção mudará.
Em São Paulo, mesmo entre companhias “offline”, há uma força de teatro de grupo voltando, com criações coletivas. O digital é responsável por isso?
É também. O digital alimenta o físico, que realimenta o digital, e essa dialética faz a arte avançar. Definitivamente, vivemos num mundo sem verdades absolutas. Daí um espetáculo ser ultrapassado quando quer “vender” ideias fechadas. O teatro de grupo evita esse tipo de comportamento.
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